domingo, 22 de agosto de 2010

sobre ficções

Então eu estou na saída do bandejão, jiboiando depois de dois grandes pedaços de bifes. Tomo lentamente o café que já queimou a ponta da minha língua. Vejo então o Caio se aproximando, com seu chapéu verde, a camisa preta da Bruna e o indefectível paletó cinza.

- E aê Will, beleza?
- Sussa. Curtindo um pouquinho do ócio.
- Ah, vou sentar aqui também

Então eu me lembro das minhas anotações e não perco tempo.

- Caio, eu escrevi uma história ontem, gostaria de saber a tua opinião. Tá aqui comigo, dá pra dar uma lida agora?
- Claro, passa aí.

Futuco a mochila e retiro uma daquelas folhas de sobras do cpd, toda rabiscada com pequeninas letras de forma - manuscritas, claro. Passo para o Caio, que, antes de começar a ler, ascende um cigarro e dobra as pernas, em posição meditativa.

"IDÉIA DE CURTA - 19/08/10

INT. DIA. UM QUARTO COM 4 CAMAS BAGUNÇADAS. ROUPAS JOGADAS POR TODO O LADO. MUITA BAGUNÇA E DESORDEM. APENAS UM PERSONAGEM, DEITADO NA CAMA, LENDO UMA EDIÇÃO DA REVISTA 'ANIMAL', OUVINDO LUIZ TATIT NO MP3. PARECE BASTANTE CONCENTRADO NA LEITURA.

CORTE PARA PORTA. UM CHUTE VIOLENTO ABRE A PORTA.

CORTE PARA O SUSTO DO RAPAZ, QUE CHAMAREMOS DE B., QUE DÁ UM PULO NA CAMA.

CORTE NOVAMENTE PARA A PORTA. ENTRAM DUAS GAROTAS, A. E C.
A. VESTE CALÇA JEANS APERTADA, CAMISETA DO CHARLIE BROWN AMARELA, BLAZER ROXO E ALL STAR BRANCO CANO MÉDIO. C. VESTE CALÇA DE COURO PRETA, APERTADA, JAQUETA IDEM E ALL STAR PRETO CANO MÉDIO.

A. (satisfeita) - Ora, ora, ora. Se não é o multipopular B. em pessoa!
C. (contrariada) - Droga, perdi a maldita aposta. Foi muito fácil te encontrar, cara, sinceramente achei que fosse ser mais difícil.
B. (Assustado e perdido) - O, o, o quê q, q, quê que vocês tão fazendo aqui?!
A. (zombrando) - Ô, dó. O que estamos fazendo aqui no seu lindo quartinho num domingo de manhã? Esse foi o sentido da sua pergunta? Ok, eu tenho uma pergunta bem mais pertinente pra esse momento. Que caralho de música é essa que vc tá ouvindo?
B. - Luiz Tatit.
C. - Não me parece tão ruim assim. Achei até simpático. Mas bem que você poderia ter botado um Strokes pra gente, einh. Ia ser tão mais performático. Tipo, entrada em grande estilo, manja?
B. - Eu, eu, eu não sabia que vocês viriam.
A. - Certo, de qualquer forma essa música tá me irritando. E acredite, nas atuais circunstâncias você não quer me ver irritada. Então eu vou te dar uma dica de como inundar o meu coração de paz: desliga a merda do som.

B. DESLIGA O SOM, COM OLHOS ASSUSTADOS E AINDA CONFUSOS.

C. - E aí, como é que você tá? Quer uma massagem nas costas, uma Schepps gelada, ou, sei lá, quer que eu leia uma fábula pra você?
B. - Ahnhh... bem, ok, eu tô completamente confuso agora. Isso é provavelmente um sonho, pq eu não consigo pensar em nenhum motivo razoável pra isso estar acontecendo. O que vocês duas estão fazendo juntas, e o que querem comigo? Eu fiz algo errado nesses últimos dias?
A. - Entenda uma coisa, B. Você é um doce, um cara bacana e francamente interessante. Você manja de muitas coisas, mas infelizmente é burro que dói. Se você fez algo errado nesses últimos dias? Bem, acho que você vem fazendo as coisas erradas há muito mais tempo.
C. (assertindo com a cabeça) - Muito mais tempo.
A. (virando-se para C.) - E qual era a outra pergunta dele que dava um gancho ótimo pra gente explicar o que nós viemos fazer aqui?
C. (assumindo seu papel no jogo) - Creio que a pergunda era precisamente o que viemos fazer aqui.
A. (irônica) - Ora essa, é claro. O que viemos fazer aqui? Vou te dar algumas pistas. Você trouxe as pistas, querida?
C. - Mas é claro. Estão logo aqui na minha bolsa.
A. - Olha só, B. , como nós somos boazinhas. As pistas não serão dicas verbais. Serão dicas visuais. Acho que condiz bem mais com a sua natureza, não? As dicas estão dentro desta simpática bolsa da Betty Boop. Curioso?
B. - Ahnnnn..., sim claro. Por favor, pode mostrar.

A. ABRE A BOLSA E A VIRA ENCIMA DA CAMA. DE DENTRO CAEM UMA PORÇÃO DE BISTURIS, FACAS, SERRAS DE ABRIR CRÂNIO, FURADEIRAS E OUTRAS COISAS QUE DÃO AGONIA. B. SE DESESPERA E FAZ MENÇÃO DE SAIR DA CAMA. C. RETIRA UM REVOLVER DO BOLSO INTERNO DA JAQUETA E ATIRA NA PERNA DE B. NA DIREITA E NA ESQUERDA. O RAPAZ GRITA E SE CONTORCE DE DOR. A. OBSERVA A CENA COM FRIEZA. C. DÁ ALGUNS PASSOS EM DIREÇÃO DE B. E ATIRA EM SEUS DOIS BRAÇOS, NA ALTURA DO COTOVELO. OS GRITOS SÃO DESESPERADOS, MAS VÃO LOGO DIMINUINDO, ATÉ CESSAR. O RAPAZ ENTRA EM ESTADO DE CHOQUE.

A. - Você está bem?
B. - ...
A. - Ok, acho que foi uma pergunta estúpida.
C. - Desculpe, mas se não fizesse isso, você fugiria. Você sabe que fugiria. Estamos aqui pra te mostrar a verdade, e dessa vez você não vai fugir da verdade. Dessa vez você não vai fugir. O mérito não será seu, será nosso, mas, enfim, podemos viver com isso. O importante é que você veja.
B. (sussurrando) - Ver o quê?
A. - Isso, Meu amor. Isso.

A. PEGA UMA DAQUELAS SERRAS QUE OS MÉDICOS USAM PRA CORTAR OSSOS E A LIGA. C. PEGA UMA TESOURA E CORTA A VELHA CAMISETA AZUL DO SONIC YOUTH DE B.. A. COMEÇA ENTÃO A CORTAR O PEITO DE B. CORTE FEITO, DESLIGA A SERRA E A PÕE DE LADO. A GAROTA ESTÁ TODA SUJA DE SANGUE, QUE ACABOU RESPINGANDO POR TODO O QUARTO. E ENTÃO C. AGARRA AS COSTELAS DA ESQUERDA, ENQUANTO A. A DA DIREITA. AS DUAS PUXAM, CADA UMA PARA UMA DIREÇÃO, ABRINDO ASSIM O TÓRAX DE B. QUE REVIRA A CABEÇA, PRA NÃO VER TAMANHA VIOLÊNCIA. A. ENFIA A MÃO DENTRO DA ABERTURA TORÁXICA.

A.
- Como eu imaginei. Vazio.
C. - Exatamente como vc me disse.
B. - Do que vocês tão falando?
C. - Cara, cadê a droga do seu coração?
B. - Ãnhn???
A. - Seu coração, B. Você não tem mais coração.
B. - Mas isso é impossível.
A. - É só levantar a cabeça e olhar. Não tem nada aí dentro. Vc não tem coração.
B. - Merda!
C. - Merda digo eu, porra. Você deveria ter levado isso em consideração antes de ter me chamado pra sair.
B. (constrangido) - Desculpa...
A. - Espero que você tenha entendido, querido. Muito bacana você estar em busca do meu amor e tal, mas não tem coração aí dentro. Entende. Assim não dá.
C. - Mas se quiser sair pra tomar uma cerva, pra mim ótimo.

PLANO DE CONJUNTO. B. ESTÁ NA CAMA, ATÔNITO. CADA UMA DAS GOROTAS OCUPA UM LADO DA CAMA. A IMAGEM VAI FECHANDO ATÉ CHEGAR A UM PRIMEIRO PLANO DO PEITO ABERTO DE B. VAZIO.

A TELA ESCURECE. SOBE OS CRÉDITOS"

O Caio termina de ler e eu permaneço naquela tensa expectativa pelo comentário de julgamento. Não consigo me conter e já vou me desculpando.

- Eu escrevi meio que correndo, então a idéia é ir polindo os diálogos, deixar mais redondinho, mais engraçado talvez.
- Ah, cara, tá legal, achei legal essa coisa do humor negro.
- No meu caso é legítimo, né.
- hahaahhah
- Ah, bom que vc curtiu.
- Então, mas acho que uma coisa meio que incomodou. A história tem um tom que é muito de coitadinho. É tipo auto indulgente travestido de cruel. Acho que tem um tom muito parecido com os textos que vc escreveu no seu blog logo depois que vc e a Mazu terminaram. Se é que eu posso te dar algum conselho, acho que deveria tentar não se colocar no lugar da vítima. Assumir mais a responsabilidades sobre aquilo que acontece com você.
- É, acho que vc tem razão.
- Sei lá, posso estar errado.
- Magina. Valeu a dica.

Levanto e jogo o copo plástico no lixo. Tenho que correr, pois daqui a pouquinho entro no trabalho.

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