quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

sobre Deus, eduardo coutinho e a esposa do ricardo

Regressando de merecidas férias em Boa Esperança - MG, fui diretamente para o Cine Paradiso vidiar a última traquinagem de Eduardo Coutinho, Jogo de Cena. Ótimo filme. Em certa altura de projeção, uma das mulheres entrevistadas - após relatar a morte do filho de 19 anos - diz que Deus havia feito uma maldade com ela. Uma maldade muito grande. Após muitos meses ela conseguiu superar a perda, mas ela não conseguia perdoar Deus por ter levado seu filho. Para ela, aquilo não estava certo.

Retornando para casa naquela noite, me encontrei com meu velho amigo Ricardo, no ônibus, um pouco antes do ponto onde eu iria descer. Conheci o Ricardo na quarta série, estudamos juntos. Era um moleque encapetado. Seu pai tinha um ferro velho no terreno da casa da família, e a turminha da escola o chamava de Ricardo Fidido. Por causa do seu trabalho, ia sempre muito sujo pra escola. Uma vez, ele e o Ederson escreveram um tosco bilhetinho de amor, usando a assinatura da Paulinha, e colocaram no meu estojo. Por causa daquele bilhete, passei os 5 anos seguintes estupidamente apaixonado por uma baixinha que nunca gostou de mim (brincar com os sentimentos de crianças tímidas e sensíveis é algo muito sério). Acho que foi na oitava série que a família do Ricardo foi pra Igreja Universal, o que fez com que tudo mudasse, tipo como naqueles programas do fala que eu te escuto. A partir daí, o Ricardo se tornou um amigo muito melhor.

Sempre gostei muito dele. A pouco mais de um ano ele apareceu em casa, contou que era sócio em uma oficina mecânica, tinha ótimos planos para futuros negócios, e iria se casar. Infelizmente não pude comparecer na cerimônia, mas estava feliz pela felicidade de um amigo.

De volta ao ônibus: Nós iríamos descer no mesmo ponto. Eu disse que estava voltando do cinema, e ele disse que voltava da igreja. Eu disse que tinha viajado pra Minas, e ele disse que não havia viajado, não teve cabeça pra isso agora que sua esposa falecera. Eu engoli em seco. Era dia 02 de janeiro, e sua mulher tinha morrido a 3 dias. Estava internada há mais de um mês, com uma doença que não tive coragem de perguntar. Ele me disse que não estava mais com a oficina, houve uma briga entre os sócios. Tinha arrumado um outro emprego, mas, por ter ficado ao lado de sua companheira em seus últimos dias, faltou demais e foi despedido naquele mesmo 02 de janeiro. Dei meus pêsames, disse pra ele passar em casa quando quisesse, e me despedi com um nó na garganta.

Há dias em que eu fico muito triste. Dias como hoje. Me sinto muito sozinho. Mas meus problemas são ridículos quando comparados a alguém que lidou com a morte da mulher que ama. Imagino que o Ricardo tem perguntado incessantemente a Deus o porquê. Porque matar sua esposa desta forma, no ano novo, no início do casamento? E aposto $10 dólares como Deus se mantém caladinho, enquanto o cara sofre, esperando por respostas que nunca virão.

Esse Deus cristão ocidental não existe. A vida é fragil e fugaz. Todos vão inevitavelmente morrer, incluindo as pessoas que você mais ama. Essas são verdades tão óbvias que eu me impressiono de ficar tão comovido com esse tipo de situação.

Mas acho que isso faz parte do Drama Humano.

4 comentários:

Harry disse...

Por rigidez filosófica, encaro a vida como um agnóstico: simplesmente não coloco Deus nos meus cálculos, pois não se existe e, se existir, não sei como é.
Mas às vezes tendo a acreditar que sim, que existe um Deus que planejou tudo. As primeiras vezes que senti isso foi como se Ele me recompensasse pelo fortalecimento do meu agnosticismo.
Mas as vezes que realmente interessam são aquelas que vem depois de brutalidades, barbaridades, depois da completa falta de sentido, depois de socos na boca do estômago... daqueles que te deixam sem ar até para chorar. Nessa hora eu vejo a vida como a mais genial tragédia já feita, vejo Deus como o autor de um teatro atroz, como o mais cruel dos cruéis e... não, não sinto raiva d'Ele... muita gente sente raiva em tais situações, mas eu o vejo como um Gênio. Mesmo as minhas desgraças, eu não consigo deixar de admirar.
E deve haver quem diga que eu não sei do que estou falando, que eu não conheço as mazelas do mundo, que a brutalidade vai muito além do que imagino. Napoleão certa vez perguntou a não me lembro quem, ou não me lembro quem perguntou a napoleão se ele acreditava em Deus. Foda-se quem perguntou, o importante é o que disse Napoleão: "Quem foi a uma guerra não acredita em Deus".
Mas eu acreditaria... eu acreditaria exatamente pela inconcebível brutalidade, acreditaria diante de tão absurdamente chocante obra que existe um maestro detrás de tudo isso.

João Rampim disse...

o problema é ver deus como um responsável moral (não sei se falei bobagem com essa denominação, se falei, perdoem-me) pelo mundo. dentro da lógica humana, deus é necessário (como o ígor me disse uma vez numa conversa sobre kant), mesmo que seja inconcebível. pois como nosso conhecimento se baseia na causalidade, a regressão em busca das causas das coisas termina inevitavelmente numa causa primeira, eterna e atual (por isso descartes precisa provar a existência de deus para garantir a veracidade das ciências), e essa causa é o que chamamos de deus. mas, para mim, é só uma causa. fomos criados com a capacidade de julgar, mas os julgamentos são nossos. criamos nossa percepção do mundo com base nos contrários (sim e não), fomos nós que demos o nome "drama" à nossa própria vida. não há explicação para a morte de uma pessoa amada, exceto a de que essa pessoa, assim como todas as outras, é finita. no mais, a causa primeira nunca responderá às questões criadas pelo homem e suas paixões.

bill disse...

Com amigos como esse, o que mais eu poderia querer?

:D

Harry disse...

O que mais? Sexo, drogas e rock'n'roll, por exemplo?