domingo, 18 de novembro de 2007

lembranças de um olhar monocromático

A gente nasce meio que por acaso. Num país que não escolhemos, numa família que tampouco. E a escolha do corpo que habitaremos também não nos pertence.

Papai e mamãe me amam, é tudo o que eu preciso até os seis anos. Então vem a pré-escola. O "prézinho". A tia Suzi tinha traços indígenas. Ela era linda. Um dia ela se inclinou demais para me mostrar algo no caderno. Ela estava sem sutiã, o que me permitiu ver seus seios, de relance. Me lembro exatamente dessa cena. E também me lembro de uma garota e de um gordo.

Ele era um menino terrível, só fazia bagunçar e brigar com os outros. Era gordo e preto. Ela era quase uma altista, acho que nunca disse uma palavra no ano inteiro. Extremamente tímida e extremamente branca. O garoto foi expulso da escolinha, por achar que arremessar uma pedra no crânio de outro menino era algo divertido. Quanto à garota, eu acreditava que por ser muito branca, ela era também muito pura. Foi a primeira menina que eu gostei.

Minha infância foi regada à muitos filmes e desenhos na televisão. Todos os heróis eram brancos. Com excessão de algumas comédias estreladas por atores negros. Bem, decerto os brancos são mais propensos a salvar o mundo e ficar com a mocinha no final, e os negros se dão melhor fazendo as pessoas rirem. Eu era uma criança tímida, e cresci acreditando nisso. Papai não gostava de pretos, e acho que não me considerava um. Mas, mesmo bem novo, eu tinha certeza de uma coisa: branco é que eu não era.

Mesmo com doze anos, as garotas me apavoravam. Pensava na Maria Joaquina chamando o Cirilo de "negrinho", com aquele ar de desprezo sem fim, e morria de medo de alguma das meninas da escola fazer o mesmo comigo. Céus, como era doloroso ver novelas sobre escravidão, ou filmes sobre a Klu Klux Klan! Ficava muito mal, achava que o mundo era só injustiça. Mas a visão que eu tinha dos negros era a de um bando de coitados. Por isso eu me sentia um sujeito inferior. Inferior a qualquer um de meus amiguinhos brancos. Eu achava que todos os brancos odiavam os negros, e que na primeira oportunidade eu seria humilhado por causa da minha cor. E é por isso que me lembro exatamente da primeira vez que fui almoçar na casa do meu primeiro amigo, o Fernando. Achava que ele morava numa mansão (afinal, ele era branco, ora bolas!), e que todos comiam à mesa de acordo com as regras de etiqueta. Cheguei lá quase petrificado de vergonha. Mas fiquei surpreso ao ver que era tudo meio bagunçado, como em casa, e que o Fernando e o irmão dele subiam nas cadeiras e arrotavam à mesa. Uau, eles eram como eu, mesmo sendo brancos!

Uma vez uma garota (ruiva) me disse que os pretos roubam e matam mais que os brancos. Ao ser questionada, advogou que era só olhar pras cadeias, perguntar para os parentes que já foram assaltados, assistir ao jornal. Eram quase todos pretos; os brancos marginais eram minoria. Percebendo que eu tinha ficado muito nervoso, ela tentou consertar: "mas não se ofende, tá, porque você não é preto, você é moreninho". Era o mesmo argumento dos caras que me contavam suas nojentas piadas racistas. Eu não precisava me ofender, pois, afinal, eu era "moreninho", não é mesmo?

Cara, como foi bom ver o Will Smith no Independency Day e no MIB, botando pra quebrar! Um negro salvando o mundo! Todo mundo gostava dele. Um herói. E eu vi os filmes do Spike Lee. Vi Malcom X. Denzel Washington discursando por 3 horas sobre Orgulho Negro realmente muda a cabeça de uma criança. E que ator formidável! Negro. Não me lembro qual foi a primeira vez que me senti confortável sendo negro, mas foi uma baita libertação. Podia enfim ver um filme e querer ser como aqueles caras. Não eram mais aqueles caucasianos fódões que dominavam o cinema, agora era a vez dos negrões fódões! E a publicidade. Foi tão revolucionário ver pretos em comerciais de tv, e em desfiles de moda. Quando eu via as mulheres dizendo "eu com um negão desses, einh!", pensava, exultante, que negros podem sim ser bonitos. Bem, talvez até eu pudesse ser um pouco bonitinho. E talvez algum dia alguma menina pudesse enfim gostar de mim.

Foi um duro aprendizado. Mas veja, hoje temos o Lázaro Ramos, exemplo para qualquer jovem negro de que é possível alcançar o sucesso, independente da cor da pele. Isso sem esquecer sua esposa gatíssima, Taís Araújo, que alem de linda é talentosíssima.

Talvez você, que me lê agora, ache tudo isso muito bobo. Mas para mim é algo muito sério. O conceito de igualdade não pode ser compreendido por alguém que tem uma baixa alta estima. Se sentir inferior é péssimo. Foi preciso que os negros conquistassem seu lugar ao sol para me mostrar que eu deveria me orgulhar da cor da minha pele. E só assim eu poderia tratar os outros como iguais, e não como superiores.

William Pereira, 22 anos. Negro. Feliz.
Obrigado MV Bill, Chris Rock, Ice Cube;
Obrigado Spike Lee, Denzel Washington, Lázaro Ramos;
Valeu Seu Jorge, John Singleton, Samuel L. Jackson.

Orgulho sempre!
Igualdade sempre!

Um comentário:

-Rol disse...

É... igualdade é foda... mas passa a sua infância inteira sendo chamado de "barriga de lesma" só por ser branquela pra vc ver como é!
Isso me causou muitos traumas, e fez com que eu nao usasse bermudas até a oitava série.
Acho que o mundo é injusto igualmente para muito brancos e muito pretos. A gente sempre é motivo de piada. e sem contar qdo me disseram que eu tinha verminhos, e não dedos no pé. Sorte dos pardos.

Mooooooorro de saudade!