No filme "Quase Dois Irmãos" da brasileira Lúcia Murat, há uma frase chave que legitimou um pensamento que sempre tive comigo: "todos nós temos duas vidas: uma a que vivemos, e outra que sonhamos".
Simples e Genial. A vida que vivo (ou que penso que vivo) está precariamente sustentada por alguns pressupostos, como por exemplo que estou acordado, e não sonhando enquanto durmo; e que os meus sentidos não me enganam quanto às informações que recebo acerca da realidade. Mas o que importa é que acredito que existo, que estou vivo. Tenho minha vida. Mas quando viajo nas idéias, como dirigir um filme, tocar com os Los Hermanos ou ouvir um "eu te amo" da Karina Bacchi, aí sim eu me sinto vivo de verdade. Como a mulher daquele filme do Woody Allen, "A Rosa Púrpura do Cairo"
Afinal, o que seria da vida sem o brilhante anarquismo ateu do Saramago (não consigo imaginar a vida sem "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" ou "Ensaio Sobre a Cegueira"), ou o colorido minimalismo do tcheco Milan Kundera? A visão gélida e calorosa, contudo implacável de uma Clarisse Lispector ou os tormentos sexuais e intelectuais do protagonista de "Furia", do Rushidie. Como viver sem eles? Brás Cubas, Codinome V, Raskólnikov! São minhas vidas, minhas queridas vidas paralelas. Tão importantes quanto a real. Através delas eu vivi, morri, amei e matei.
Como desprezar o olhar de Mônica, que nos desnuda, naquele antigo filme do Bergman? Ou não tremer com o flashback da morte do irmão do Charles Bronson nas mãos do terrível Henry Fonda? Como permanecer insensível aos velhos fotogramas deixados por Alfredo, às peças pregadas pelos "amici miei", à beleza inatingível da Audrey Hepburn, aos tombos de Carlitos, o ódio de Tony Montana, à revolta da tripulação do Potemkin? Aos sonhos do Kurosawa, à demência do último Glauber, ao amor tão vermelho e pulsante entre o escritor e Satine, e ao horror dos zumbis de Romero? Ver o Babenco brincando nos campos do Senhor, Coppola enlouquecendo no Apocalipse, Bergman torturado suas mulheres, Almodóvar estuprando Kika (e também a nós, todos nós), de Niro saindo de seu táxi e mandando bala nos cafetões, Godard anarquizando com Belmondo em seu Acossado, e a musa blasé Anna Karina (Ah, Anna Karina!).
Uma vida não pode ser taxada de sem-graça se tem o grito de Janet Leigh orquestrado por Hitchcock, a crise ética dos assassinos judeus de Munique, os lindos pés descalços de Mia Wallace, o Cristo de Scorsese, o medo da morte de Hall, o final sem esperanças dos Incompreendidos de Truffaut, a suntuosidade da nobreza de Visconti, a insanidade sangrenta de Bala na Cabeça, de Woo, os caminhos de Kiarostami ou o vazio existencial do Antonioni.
Todos nós temos duas vidas: uma a que vivemos. Outra, a que sonhamos. Não me pergunte qual das duas eu prefiro.
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