quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Um 'recorta e cola' no mestre Inácio

Nesta postagem datada de 18/12/2009, o crítico de cinema Inácio Araújo fala sobre coisas que ecoam muito forte em mim, ainda sob o efeito do filme "é proibido fumar", da Anna Muylaert que eu ainda não vi.

Recomendo a leitura.

"O cinema não pensa, o cinema mostra

Queria só dizer algo sobre "É Proibido Fumar", mas acho que terei de defender "É Proibido Fumar"

Por onde começar?

De todo modo "é a forma que eleva e que educa", disse Robert Bresson.

Estou partindo de algum lugar, não sei. Estou voltando a "É Proibido Fumar".

Perguntando o que, afinal, é arte?

Por que uma coisa é arte e outra não é?

O que diferencia um retrato de Rembrandt de um do Roberto Camasmie?

Um texto do Kafka de um da Danielle Steel.

Estou partindo de alguns comentários no blog. Não sei aonde vou chegar.

Começo por alguém que escreveu dizendo que um toque de um carro não dá pra matar ninguém.

Ora, eu poderia responder o seguinte: sim, e saltar de 500 metros e sobreviver, como faz Harrison Ford em "O Fugitivo", dá?

Isso quer dizer que não vale a pena ver "O Fugitivo"?

Claro que não, é um baita filme. Mas não se trata de "perdoar" o filme por aquela cena. O filme existe por causa dela.

A vida é inesperada. Sei de gente que caiu de cinco andares e só quebrou uma costela.

É a mesma coisa com "É Proibido" com a morte/acidente.

Uma ficção só existe em torno e em função de coisas inusuais. Senão, qual é a graça?

Pode-se objetar que também deve transmitir verdade, que se não temos o sentimento da verdade, não adianta.

Então eu volto ao Jorge Luis Borges. Ele tenta definir arte. E conclui que arte é aquilo que nos faz felizes.

Curto e grosso. Não adianta nada alguém dizer que arte é "Cidadão Kane" se eu olhar para aquilo e não me sentir feliz.

Ao mesmo tempo, acho que não dá para se dar ao conforto de olhar para o filme, o "Kane", por exemplo, e simplesmente dizer: ah, esse cara não sabe o que faz, ele enrola tudo, bota o fim no começo, o começo no fim etc.

Quem se conforma fácil assim vira preguiçoso e só consegue engolir o que já vem mastigado.

Ou seja: a norma.

O que é a norma no cinema? Um caso. No cinema clássico só se usava um close em momentos de máxima dramaticidade. O close era tanto melhor quanto fosse reservado a esses pontos altos do filme.

Se vc. estacionar nesse critério, quando entra o Sergio Leone, digamos, que só filma faroeste em close, ou o Bergman, ou um cara assim, vc. vai dizer: está tudo errado.

Não está. É que o cinema moderno abandonou certas normas tradicionais, então a escrita é diferente, não tem mais regras.

Em tudo é assim. Me parece bobo aquele escritor, Tom Wolfe, chegar e dizer, com ar de quem descobre a pólvora, que o cubismo só existiu porque o Picasso não sabia desenhar.

É achar que a arte não tem nenhuma relação com o mundo, com a vida, é coisa sem significado. Ele pensa que a pintura continuaria a representar objetos e pessoas depois do cinema e da fotografia, o que é ridículo.

Com o cinema nacional às vezes não é muito diferente.

Parte-se do princípio de que o cara não entende nada do que faz e que nós estamos aí para corrigi-lo.

E não de que, diante de uma obra de arte, devemos lutar para, ao menos, tentar entendê-la.

Mas chega disso. Quero falar do cinema da Anna Muylaert. Ela fez um telefilme, "Para Aceitá-la Continue na Linha". Achei tão interessante que, se esse projeto de telefilme da TV Cultura (e, se não me engano, da SEC) não der em mais nada já terá valido a pena.

Bem, a horas tantas há duas irmãs conversando. Uma é magrinha, a outra é gorda. E a primeira reação é de estranhamento. Como assim, irmãs? São tão diferentes. Depois a gente lembra desses irmãos que não têm rigorosamente nada a ver um com o outro. Um é baixo, outro é alto, um é moreno, outro é loiro. E assim vai.

Ela não faz disso um tema. Bota lá e pronto. É uma relação com as coisas, direta. Com a observação das coisas.

Ela evita dramatizar. Imagine alguém que chantageia seu marido. O marido vem e conta para a mulher. Ela se descabela. Chora à noite. O marido não consegue dormir à noite, pensa em maneiras de calar o chantagista para sempre etc. etc.

Isso é o de sempre.

A Muyalert não faz assim. Ela retira toda dramaticidade. Se bobear, bota uma piada no meio.

Ela é da escola do Hawks: o que é é.

Cinema da matéria. Sem psicologia, sem idéias. A matéria.

Não precisa de psicologia. Ela filma os mais belos quintais que eu já vi. É uma especialista em filmar exterior-fundos: o pátio do prédio, a rua de trás.

Parece fácil. Só parece.

A arte da contenção é difícil, porque é rigorosa.

Nada de fazer um geral da av. Rebouças congestionada, gente xingando, o rádio falando do congestionamento, um flash back com o cara guiando sem trânsito nenhum às duas da manhã.

Outra coisa.

Uma placa indica a rua. Um plano fechado dos carros que se movem para a frente, uns perto dos outros. A câmera os acompanha, apenas. Não comenta, nada. Mostra.

Para começar, não tem flash back. É só o momento. O que acontece.

Parece fácil, mas não é. Porque é superficial. E ser superficial não é fácil, porque você tem de mostrar o mundo a partir das roupas, dos rostos, dos carros, dos gestos.

Parece que não tem conteúdo. O Hawks também não parecia. O Rohmer também não. O Renoir idem. Os cineastas desse tipo parece que são meio banais.

É preciso esperar, deixar que o filme viva com você um pouco. Porque não é para pensar a respeito. Não há o que pensar.

"O cinema não diz, o cinema não pensa, o cinema mostra", Eric Rohmer disse.

Então a gente tem, como dizia o Mizoguchi, que a cada dia levantar e lavar os olhos, para ver quando as coisas modernas estão na nossa frente.

Meu Deus, eu estou ficando sentencioso. Vamos parar já."


Pra quem quiser mais:
http://inacio-a.blog.uol.com.br/

Nenhum comentário: